O telefona toca.
O nome de um indivíduo é prova cabal de que o homem vive em sociedade. De facto, ele só tem sentido ou utilidade, enquanto meio para que outros nos possam identificar. Por outras palavras, o nome é algo para o "outro ver".
Contudo, é comum ter um indivíduo vários modos de se referir. A diversidade de situações interpessoais, a infinita teia de relações sociais e a complexa interacção em que nos envolvemos no trato com próximo, fazem de nós objecto de diversas qualificações, culminando com identificações várias. E não raro é que entre estas, umas são mais conhecidas que outras. Aos olhos dos outros, somos bem distintos do que efectivamente julgamos ser. Por isso, o modo como somos vistos no nosso meio, longe de depender da nossa exclusiva vontade, é o que resulta da nossa vivência com outros.
Para alguns, os nomes com que nós nos baptizámos têm apenas a função de nos relacionar ao Estado, enquanto ente organizador da identificação dos seus cidadãos, ou a todos os outros que se situem fora das fronteiras do nosso meio. Com algum exagero, é certo. Porém, bem vistas as coisas no contexto de Macau, tal convicção não dista da realidade. Somos efectivamente apelidados de formas tão díspares, a ponto de ignorarmos, sem querermos, a chamada de quem nos trate pelo nosso nome "oficial".
Assim, para a frustração dos nossos pais, os nomes que nos escolheram - após longas consultas aos nossos avós, aos tios, aos primos, ao mestre-adivinho, ao quiromante, ao pároco, à lista onomástica oficial, às páginas amarelas e sabe-se lá a quem mais, com a paciência que só Deus compreenderia - muitas vezes acabam por se reduzirem a meras palavras que constam do nosso bilhete de identidade, do passaporte ou da carta de condução. Relegado para um plano inferior, sem uso corrente, sem vida.
Ora, isto acontece quando o nome oficial é suplantado no seu emprego normal por outros identificativos. São eles que passarão a tomar conta da nossa identidade para o resto da vida, sendo o meio mais idóneo para nos referir e a resposta mais apropriada para a pergunta "filo di quím?".
Hipocorísticos e alcunhas, são, portanto, formas sucedâneas de identificação de um indivíduo inserido num meio social restrito, em que todos se conhecem, ou, pelo menos, ninguém é estranho a ninguém. No caso de Macau, tal não foi excepção. Porém, nem sempre é fácil a sua distinção. Cheguei a fazer uma compilação deles e confesso ter sentido alguma dificuldade em destrinçá-los.
Começando pelos primeiros, por definição, eles resultam de círculos sociais mais pequenos, mormente familiares. Em Macau, chamavam-se nómi-di-casa ou nómi-di-família, sugerindo o ambiente de ternura e de afecto como é o lar onde crescemos. São empregues no diminutivo, por se tratarem de nomes dados a crianças de tenra idade, e por isso mesmo também foram conhecidos por nómi-dóci, designação naturalmente inspirada na doçura inocente e infantil, própria da idade em referência. Em muitos casos, nasceram de corruptelas cometidas pelas amas chinesas que as cuidavam, sem para tal terem conhecimentos da língua portuguesa. Com o tempo, popularizaram-se no seio da Comunidade e entraram no uso vulgar de todos. O que me fez recordar um episódio contado por uma pessoa amiga, em que ela teria começado por tratar o seu recém-nascido filho por A-Chai, enquanto se decidia qual seu nome de baptismo. Sem surpresa, o senhor é hoje conhecido por aquele, e não pelo que passou pela água benta. Nomes como Atútu, Bibico, Calim, Ila, Ito, Mana-Chai, Mui-Mui, Nonó, Púchi, Quinho, Taco, Zinho acompanham a vida inteira dos seus donos, cada um com a sua distinção e individualidade.
Adé dos Santos Ferreira foi conhecido como o Poeta da Língu Maquista. Zézé Rosário, o antigo Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Macau. O saudoso otorrinolaringologista, alto e de cabelos de cor de platina chamava-se Dr. Chacha Luz. Maco Amante, Mujica Silvestre, A-Mó Rocha, os irmãos Mano, Aling e Dado Siqueira, da Tuna Esperança e outros, fizeram do bandolim o instrumento emblemático e, por sinal, o mais nostálgico das Tunas de Macau.
O ilustre deputado macaense, indigitado para a Conferência Política Consultiva do Povo Chinês dá-se pelo nome de Neco Alves. Chúchu Xavier Ritchie foi antiga Presidente da Assembleia Legislativa de Macau. Os seus irmãos são Nico, Zinha, Manú e Édo Xavier. Chai-Chai Rodrigues dirige os destinos da APIM e do Conselho das Comunidades Macaenses. À testa do Instituto dos Estudos Europeus está o ex-Presidente do extinto Leal Senado, Zito Sales Marques. A Escola Portuguesa de Macau, tem Didí Silva como sua Directora e Jimmy Rangel, ex-Secretário Adjunto durante a Administração Portuguesa, é o homem do Instituto Internacional de Macau. Ninho e Zeca Azedo, são ilustres juristas, sendo um, ex-Presidente da Associação dos Advogados de Macau, e outro, Juiz do Tribunal de Segunda Instância. Peca Jorge publicou com o seu marido os famosos e, há muito, esgotados Álbuns de Macau. Api Rosário, A-Lou Airosa, Lélé Rosa Duque, dos lendários Thunders, fizeram "Macau Terra Minha", o hino saudosista dos Macaenses. Totó Branco é Presidente da Direcção da Casa de Macau em S. Paulo. Na Banca, marcaram presença Léni Costa e Pom-Pom Magalhães, assim como no Hóquei estiveram Édu e Dico Cordeiro e Jozico Rocha, entre tantos outros.
Néu-Néu Coelho, Nandinha Robarts, Chichóni, Charly e Tirita Santos Ferreira, Nano Silva; Gito Jesus; os irmãos Bicho, Coque e Ato Morais; Ricky, Doobee, Beto, Manel e Teri Nolasco; Abíbe, Achúchi e Meno Airosa; Géni, Édi e Jóni Nascimento. É infindável o rol desses nomes. Mas não é esse o objectivo deste artigo, senão apenas retratar esta face tão pitoresca da Comunidade.
Quanto ao segundo grupo, não tenho a certeza se existe ou tenha existido alguma designação macaense para alcunha. Não obstante, já ouvi expressões como nómi-chiste ou nómi-bobo ou mesmo nómi di rua, com esse significado. Que me perdoem os puristas, mas serão estes que irei utilizar para o presente artigo.
Com a alcunha estamos bem fora de casa, transpondo as fronteiras da família. Situamo-nos agora na escola, na rua, no bairro, no serviço, com os amigos e colegas. Se o nómi-di-casa traduz aquela ternura de um meio familiar donde brotou, o nómi-di-rua é mordaz nas suas manifestações. O designado encontrar-se-ia numa situação de inelutabilidade e de resignação, à mercê do escárnio cruel do meio. Como uma tatuagem gravada na sua pele, também ele acompanhará o contemplado até à sua morte.
Sem embargo, é da alcunha que se extrai o que há de mais rico da imaginação humorística macaense. O nómi-di-rua não só consiste num epíteto, pois também encerra uma vivência, narra um episódio parado no tempo, uma autêntica fotografia de um momento na vida, acima de tudo, imbuída de comicidade brejeira. E muitas vezes traduzem-se em ressábios do povo contra os mais vaidosos e abusadores, sendo a alcunha um instrumento nivelador de eventuais disparidades sociais.
Calinho Tau Kai (tau kai = roubar galinhas), notabilizou-se por ser um descarado papa-frangos. Cemitério Vong Hin, o endiabrado apaixonado pela pesca que ia ao cemitério caçar a suculenta minhoca amarelada das covas ("vong hin") para isco. A canção italiana popular imortalizada por Emilio Pericoli, valeu ao seu ferrenho fã macaense o nome de Al-Di-La. Aquela mulher de nádegas avantajadas que lhe impunham um bamboleante andar pachorento, ganhou o nome de Bombordo-estibordo. O andar cadenciado pendendo o corpo para a esquerda e para a direita herdou ao seu dono a designação de Pêndulo. E o Esqueleto deambulava pelas ruas de Macau como um saco andante de ossos. O campeão da modalidade orgulhava-se em largar trinta e seis puns (peidos) numa assentada, por isso Tira-Pum foi como se conheceu. O seu semblante inexpressivo, mesmo em ocasiões de grande euforia, deu-lhe a fama de Cara-de-Aço. Quarenta-e-seis, foi o nome que lhe atribuíram, por ser a medida dos seus magníficos peitorais. Mas, Tai-Nin-Po (literalmente, "Mamas Grandes"), não se inferiorizava em números e Chili-Ponta-Céu, tinha os seus seios bem arrebitados.
Madame Machado era a professora de Francês e a incorrecta pronúncia da palavra gaulesa "Tableau", valeu ao aluno o nome de Tabléu ou Tabliáu. Madre era o efeminado e Half-Man, a mulher máscula. Os gloriosos feitos em noites de amor deram ao Língua-de-ferro, o título que merecia. E a Shit-Man calhou parar a sua motorizada no sítio e no momento em que rebentava o cano de esgoto. Radar cheirava a notícia à distância, enquanto que Catavento virava-se conforme a conveniência dos ventos.
Cú-de-Pato, Cú-de-Chumbo, Pé-Grosso e Pé-de-Bambú. Bebé-Gordo, Bebé-Preto, Bebé-Rato. Gafanhoto, Mosquito, Piolho e Chong-Mei-Mei (Libelinha). Bôi, Bôi-Apis, Pai-de-Bôi, Olho-de-Bôi.
Bexigoso-Em-Dois-Segundos, Cindarella-Stepsister e Tap-Siac-Sisters. Jacaré, Mula, Mamute, Macaco. E mais tantos outros, bem demonstrativos do fino mas cáustico sentido de humor dos Macaenses.
A bem ou a mal, as famílias também foram alcunhadas. Assim, Mendonçada para os Mendonças, Rosalhada para os Rosários, Nolascada para os Nolascos, Pancraciada para os Silvas, descendentes de Júlio Pancrácio. Num dia, numa das antigas lojas de mouros, de Macau de outros tempos, três irmãs apreciavam chapéus. Uma delas pergunta a outra se o que tinha nas mãos era bonito, ao que lhe foi respondido: "Very Good...un-pôco chipido!"(Muito bonito, mas um pouco achatado). Daí Very-Good-Chipido, que se estendeu para o resto da prole. Aos Senna Fernandes já chamaram tantos nomes, sendo um deles, segundo me contaram, é Leng Tong Kuang (ferro velho!), decerto uma informação interessante por se confirmar! De irmãos, tivemos, entre outros, Tai-Capí (o grande Capí) e Capi-Chai (pequeno Capí); Duro-duro e Móli-Móli.
Em Macau existe um nome polivalente, que de modo algum eu deixaria escapar: Chico. Não é só diminutivo de Francisco, nem se resume apenas ao sinónimo de imbecil, como muitas vezes tal é entendido. Chico é acima de tudo o homem vulgar do povo, com o orgulho da sua simplicidade. Mas Chico também é um complemento de alcunhas. Chico-Micróbio, andava obececado com a ideia de que tudo estava infestado de vírus e bactérias. Chico-Mente usava - exageradamente! - o advérbio de modo, e Chico-Direi começava as frases com "como direi...". Chico-Rapariga, Chico-Madame, Chico-Menina, irmãos Chico-Mama e Chico-Teta, Chico-Aflito, Chico-Preto, Chico-Bate-Pé, Chico-Pé-Pesado e tantos outros Chicos existiram, conforme a ocasião, a história de fundo, ao sabor do génio chistoso do Macau-Filo.
Hipocorísticos e alcunhas macaenses, nómi-dóci e nómi-chiste, ambos traduzindo uma realidade: uma plurifacetada comunidade com um passado rico em experiências e vicissitudes da vida, neste Macau fustigado por tantos tufões de mudança ao longo da sua História multissecular. E quanto mais penso neles, mais nostalgia sinto pela minha "aldeia". Porém, os tempos são outros, há que se adaptar a eles. Provavelmente continuarão a nascer mais Chicos ou mais Necos, sem ninguém dar por isso, neste Macau cada vez mais impessoal. Mais anónimo. Mais ... cidade.
Antes de terminar não podia deixar de fazer uma breve referência ao seguinte.
Após o handover, surge em Macau um "tertium genus". Um tipo de nome nunca antes visto. Ao invés dos outros que nasceram por consenso social, este é imposto. Um tipo de nome que se estende a toda a população, não se confinando à Comunidade. São os nómi-co-vírgula, nómi-di-BIR ou simplesmente nómi-contrario, à falta de melhores designações (!). Pela primeira vez em Macau, uma vírgula parece nos nossos nomes, sejam eles quais forem, em nome da uniformização do sistema de identificação dos residentes de Macau. Isso não é novidade, pois já em Hong Kong isso acontece aos nomes ocidentais. O que já espanta, e para o qual não existe uma razão mais plausível, é que o raio da vírgula aparece também nos nomes chineses. Uma uniformização até às últimas consequências, portanto!
Passei a ser Senna Fernandes, Henrique Miguel Rodrigues de. Oficialmente, já não sei se sou da família do meu irmão, que passou a ser Rodrigues de Senna Fernandes, Filipe Augusto. Um primo meu tem o seu a começar por Fernandes, e outro por De...! Agora, se eu quisesse identificar-me com o meu nome de baptismo, teria que o fazer por abonação de pessoas idóneas ou exibir competente certificação, pois o notário ou qualquer funcionário não terá qualquer obrigação funcional de saber mais nada, para além do que consta do meu BIR. Nem quero imaginar que nome teria o meu amigo de Sevilha Hernán Enrique Cuevas Y Castelón Rubia se optasse por ser residente em Macau.
Mas, pus-me a pensar, para quê barafustar? Se calhar nós é que temos a culpa de termos nomes compridos que não cabem nas bases de dados! Culpa por complicá-los, conservando os apelidos dos nossos avós e bisavós. Culpa por não termos a tradição dos apelidos precederem os nomes próprios. Culpa por se ter sedimentado ao longo de séculos, uma prática administrativa que diferenciasse tipos de nomes culturalmente diferentes. Resignemo-nos. Já temos muita sorte de não nos imporem o ponto-e-vírgula! Afinal sempre se confirma o que atrás se disse: o nome é o que outro diz que deve ser.
Se agora me perguntarem "Vôs qui nómi"? Provavelmente responderia "Qui sábi"!
Sâm assi-ia!
* Advogado. Presidente da Associação dos Macaenses. Escreve semanalmente no JTM às sextas-feiras. Devido às celebrações pascais a crónica da semana anterior é hoje publicada